ufrpe.br CARTA ABERTA À COMUNIDADE ETNOBIOLÓGICA | Programa de Pós Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza

CARTA ABERTA À COMUNIDADE ETNOBIOLÓGICA

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Recife, 30 de março de 2022

 

A etnobiologia é uma ciência relativamente recente, quando comparada a outras disciplinas acadêmicas tradicionais, como a ecologia, antropologia, biologia, sociologia etc. Dada a sua natureza interdisciplinar, a etnobiologia é capaz de estabelecer diferentes conexões com outras disciplinas, seja do ponto de vista teórico e/ou metodológico. No Brasil, especialmente na última década, o seu reconhecimento acadêmico tem sido cada vez maior, ainda que existam situações em que presenciamos a incompreensão e o preconceito a seu respeito. Diferentes gerações de pesquisadores se empenharam para dar visibilidade à etnobiologia como ciência e a contribuição que pode oferecer para diferentes desafios modernos. A criação, por exemplo, do primeiro Programa de Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza na América Latina, em 2011 e hoje referência nacional, sinaliza esses promissores cenários.

            Se por um lado a etnobiologia surge na academia com uma proposta de investigar as relações entre seres humanos e natureza, por outro lado se posiciona como uma disciplina mediadora entre diferentes saberes atuando decisivamente em uma esfera que podemos nomear de “política”. Talvez um dos maiores desafios modernos, por força desse poder articulador da etnobiologia e a sua interdisciplinaridade, seja conectar tantas e diferentes visões na estruturação de um campo de pesquisa. Mas, essa interdisciplinaridade não é álibi para incluir no campo toda e qualquer abordagem com o pretexto de ampliação de fronteiras ou de articulação com outros saberes. A etnobiologia é, em essência e origem, uma disciplina acadêmica. Então, foi com muita surpresa que vimos ser lançado o livro Ecologia espiritual: Integrando natureza, humanidades e espiritualidades[1], material que surge com uma proposta supostamente acadêmica com o propósito de lançar novos olhares para a ecologia e a conservação da natureza. Entre seus organizadores e autores, encontramos diferentes pesquisadores vinculados basicamente aos campos da etnobiologia, ecologia humana e biologia. Com 14 capítulos, a obra traz diferentes perspectivas sobre a dimensão espiritual nas relações de grupos humanos com a natureza, com abordagens voltadas a entender, por exemplo, como os seres humanos interagem com o sagrado. Todavia, para nossa surpresa, em uma obra que pretende ser acadêmica, há capítulos com forte apelo pseudocientífico e afirmações que transcendem à ciência para flertar com o misticismo e pensamento mágico:

 

“Hoje, contudo, com o avanço principalmente da física quântica, não cabe mais a separação entre as realidades físicas da matéria e energético-espirituais (MORLEY, 2019)”. (p. 2)

“A física quântica, por sua vez, revelou que toda matéria emana uma energia única, o que significa que energia e matéria são elementos interdependentes. Segundo Lipton (2007), todos os organismos se comunicam entre si e com o ambiente por meio de campos de energia. É o que ocorre quando pajés se comunicam com a energia das plantas medicinais”.  (p.8).

“Consciência é imortal, não local e pode funcionar independentemente do cérebro físico e suporta uma visão multidimensional da mente humana. Tudo está conectado no universo, e nós somos apenas parte desta grande rede de consciência conectada que está se tornando ciente desta grande realidade. O paradigma da consciência quântica explica que não há presente, futuro e passado, mas apenas um presente constante. A mente quântica é responsável pelos paradigmas sendo constantemente renovados, pois o nível de consciência no ser humano está crescendo, despertando e evoluindo. A espécie humana está sempre evoluindo e o que era chamado antes de religião, então se torna ciência nos tempos modernos. O capítulo visa vincular vários ensinamentos espirituais com o paradigma quântico, como o evangelho gnóstico de Maria Madalena, que apóia (sic) a ideia de um campo quântico unificado. Somos imortais e atemporais, uma vez que nos identificamos com a realidade eterna e consistentes com a visão quântica, entraremos nos novos paradigmas da consciência quântica”. (p.63).

 

Absolutamente nada na física quântica moderna, como defendem os próprios físicos, suporta qualquer um dos argumentos elencados anteriormente. Para Carlos Orsi[2]:

“Existem duas físicas quânticas que, assim como as paralelas da geometria euclidiana, só se encontram no infinito. Uma, estudada e produzida por cientistas em universidades e laboratórios, desvenda a estrutura microscópica da matéria, busca respostas para questões fundamentais da natureza do tempo e do espaço e torna possíveis tecnologias como a televisão e a internet.

A outra é promovida por gente que acha que E=mc2quer dizer que pensamentos (E, de energia) viram dinheiro (m, de matéria) quando estamos muito motivados (c2, velocidade da luz ao quadrado). Que a série de filmes Matrix era uma espécie de documentário: a realidade teria mesmo um “código-fonte” que pode ser hackeado por mentes iluminadas (iluminação que pode ser adquirida em convenções de auditório de hotel ou seminários online). Que, assim como o “código-fonte da realidade”, o DNA humano pode também ser reprogramado pelo pensamento. “

            No mundo atual em que o negacionismo científico progride velozmente capturando mentes e, por conseguinte, tendo o potencial de nos conduzir a um caos social, é cada vez mais importante que cientistas e acadêmicos enviem uma mensagem explícita para a sociedade. Como a ciência funciona? Como se produz conhecimento científico? Qual a diferença entre conhecimento científico e outras formas de conhecimento? Até onde posso caminhar com essas distintas formas de conhecimento? Nesse sentido, é preocupante encontrar na obra as seguintes afirmações:

“Concluímos, assim, que para garantir a manutenção e resgate dos espaços ecológicos de nosso planeta, precisamos nos colocar em ressonância com as fadas e demais seres aliados que pertencem ao reino feérico, considerando os preceitos ético-ecológicos que partem da consciência do impacto de nossas ações na natureza, inclusive nos seres feéricos, e focando na manutenção das espécies, na distribuição social dos recursos e no consumo responsável.

Resumindo, neste percurso sobre as fadas e outros seres feéricos descobrimos quem eles são, como podemos percebê-los, onde vivem e que funções ecossistêmicas exercem no planeta Terra. (...)

E vamos lembrar que aquelas florezinhas que chamamos de mato ou erva daninha podem ser utilizadas como medicamentos fitoterápicos, homeopáticos e florais. O contato com cada um desses elementos nos serve de instrumento de harmonização própria e de nosso entorno, e os elementais podem nos orientar quanto a seu uso. Portanto, vamos buscar as fadas que as acompanham e nos explicam seus benefícios! “(p. 142-145).

“Por desconocimiento de la interacción que nosotros como Reino Humano tenemos con el Reino Elemental, creemos que los cataclismos son algo natural, pero los Maestros Ascendidos nos dicen que ni Dios ni la naturaleza producirían nada que fuera destructivo para la humanidad. En este documento, abordaremos la comprensión del Reino Elemental como una forma de comprensión y dominio basados en la evolución hacia el Amor y la Armonía sobre los Elementos”. (p. 145).

            A questão, objeto desta carta aberta não é o conteúdo em si, uma vez que há capítulos na obra que abordaram a temática de forma rigorosa e séria, além de podermos encontrar tais ideias nos sistemas de conhecimento em diferentes partes do mundo. O desafio é apresentá-los em um formato que sugira legitimidade como ciência e/ou pesquisa acadêmica séria. Infelizmente, alguns capítulos desse livro provocam preocupação e podem afetar negativamente os avanços alcançados até agora e o histórico de lutas e conquistas para legitimar como ciência a ecologia humana e a etnobiologia. Como resultado, se configura em um prejuízo intelectual para jovens estudantes que encontram na credencial de seus autores a autoridade para aceitar, como científicas, essas ideias. Para dar um exemplo importante das implicações negativas que alguns capítulos do livro podem trazer, consideramos um problema confundir ciência com o seu campo de estudo. O livro faz confusão ao assumir pressupostos que não são cientificamente verificáveis. Nesse caso, nem deveriam ser tratados como “ciência”. Ao assumir a existência de “seres elementais”, “reino elemental” ou “fadas” para construir ideias dentro da ecologia e, também, ao considerar que as origens da ecologia espiritual remontam a 30.000 anos atrás, deixa claro que a construção “científica” dentro dessa área está confundida com o “objeto” estudado. A partir desta confusão presente no livro, a/o iniciante na pesquisa etnobiológica pode não compreender o papel da etnobiologia como ciência para desenvolver conceitos e teorias próprias para explicar diferentes dimensões ligadas às relações complexas das pessoas com a biota e seus ambientes.

Nesse sentido, acreditamos que as sociedades científicas deveriam se posicionar sobre esta obra, em especial a Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia, sob pena de não o fazendo, condenar à obscuridade acadêmica as ciências que procuram defender e promover. Esta carta não é uma crítica aos autores a às autoras da obra em si, os quais merecem respeito por sua trajetória acadêmica. A decisão de publicar esta carta é fomentar um diálogo fraterno, ético e crítico, sem nenhuma direção pessoal. Acreditamos que a ciência avança à medida que contrapomos as ideais em jogo.

 

[1] https://www.atenaeditora.com.br/post-ebook/4860?fbclid=IwAR1iU6sOJjVkWd8...

[2] https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/apocalipse-now/2019/10/25/car...